Crônica do - para mim - melhor cronista/escritor brasileiro, que por sorte sofreu apenas um susto no final do ano passado e, espero, vá nos brindar ainda com muitos outros textos tão bons quanto este:
Momentos 'aaah'
Temos momentos de êxtase, de arrebatamento, de profunda satisfação pessoal, mas também temos pequenos prazeres passageiros, os chamados “momentos aaah” da vida.
Exemplo: você está com uma sede de perdido no deserto. É um Lawrence da Arábia sem o cantil. Sua boca é uma caverna poeirenta. Sua língua é uma bola de aniagem, percorrida por lagartixas secas e ressentidas. Nada abaterá sua sede, salvo uma... E lá vem ela. Uma Coca Cola com gelo num copo longo (rodela de limão opcional) que você toma em dois goles, e depois do primeiro gole invariavelmente faz “aaah!”
Você chega de viagem cansado, resignado a tudo que passou e certamente passará antes de poder sair do aeroporto, e de repente vê (“aaah”) que a primeira mala a aparecer na esteira é a sua.
Coceira nas costas. Ninguém por perto íntimo o bastante para você pedir “Me coça atrás?”. Esfregar as costas numa quina pareceria estranho. Rolar no chão, mais ainda. Você tenta usar sua caneta para coçar atrás mas a caneta é curta, não alcança o ponto. A coceira aumenta. O que fazer? Você pensa: preciso de alguma coisa do tamanho certo para chegar na coceira. Um galho de árvore. Melhor ainda: uma régua. Um cassetete! Claro. Pedir o cassetete emprestado de um policial. Ele é um servidor público. Não precisa ser um conhecido, estará prestando um serviço público, ajudando um cidadão a se coçar. Você pede o cassetete emprestado. É do tamanho exato. Aaaaaaaah. .. Claro que o policial pode entender mal seu pedido e baixar o cassetete nas suas costas. O que também ajuda.
Você vai ao cinema. A poltrona é confortável. Você olha em volta e vê que não tem ninguém sentado perto de você. Ninguém para conversar durante o filme ou fazer barulho comendo pipoca ou desembrulhando doce. A sessão começa. A projeção é perfeita. Você se acomoda na poltrona e faz um merecido “aaah”.
Chuveiro na temperatura certa, outro momento “aaah” (em contraste com chuveiro inesperadamente frio, um momento “ui!”). Um pôr do sol especialmente criativo. Neta que passa o dia se recusando a lhe dar um beijo, alegando falta de tempo, mas depois vem correndo e se atira na sua barriga. Ambrosia diet, a maior invenção do homem depois da escada rolante. Ir para a cama de noite, pensar no que tem para fazer no dia seguinte e se dar conta que o dia seguinte é domingo e não há nada para fazer. Aaaah...
Enfim: são os momentos “aaah” que compensam os outros, são os pequenos prazeres que nos reconciliam com a vida. E isto que eu nem falei em sesta de sofá, diferente de sesta de cama e muito diferente de sesta de pijama, que é a sua versão oficial. Aaah, um bom sofá...
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